Literatura Católica: O que é?
Sidney Silveira
“Há jovens brasileiros que estão angustiados e a angústia aumenta neles, pois, eles nem sequer conseguem dar nome a dor que sentem.”
Ó Virgem formosa
Que domas o Inferno
Criou-Te ab aeterno
Quem tudo criou.
Ilesa notaste
Do mundo o naufrágio,
Da culpa o contágio
Por ti não lavrou.
Nas tuas virgíneas
Entranhas sagradas,
Do Céu fecundadas
O Verbo encarnou.
A grande vitória
Do género humano
Contra este tirano
De Ti começou.
Depois de lograres
Triunfo completo,
Cumprido o projecto
Que o Céu meditou,
Cresceram nos astros
Os vivas e os cantos,
E as fúrias, os prantos
O abismo dobrou.
Ó Virgem formosa
Que domas o Inferno
Criou-Te ab aeterno
Quem tudo criou.
Acabo de ler o remate de um poema de Manuel Maria Barbosa du Bocage intitulado “à Puríssima Conceição de Nossa Senhora”. Eu o escolhi para começar esta breve palestra sobre literatura católica. A ideia é fazer a indagação primeira, no caso quid est, “o que é Literatura Católica?” mostrando algo da literatura católica. Mas só que percorreremos o caminho que julgo o mais propedêutico, o mais adequado para abordarmos um tema que não é tão simples quanto a princípio poderia parecer. Eu estou habituado aos autores escolásticos que tem a virtude de, antes de tudo, partir de definições. A definição é o primeiro passo que se dá em qualquer ciência, para que todos aqueles que participam desta ciência consigam caminhar em um terreno de inteligibilidade e luz no sentido noético. Então, proponho uma definição para começarmos esta breve caminhada: Literatura é a expressão artística da realidade pela palavra.
O termo “artístico” já nos remete a um outro conceito que convêm também delinear e eu o faço à luz da doutrina de Santo Tomás de Aquino que nisto alcançou alguns cumes que não podemos deixar de lado se pretendemos ir passo a passo neste reino de inteligibilidade. Para Santo Tomás de Aquino, a arte pode ser muito bem definida como recta ratio factibilium, ou seja, é a reta razão no fazer. Eu costumo dizer a propósito que a arte é uma coisa difícil de fazer. Algo que qualquer um consegue fazer de qualquer maneira só pode ser chamado de artístico por uma tosca analogia. Alguém poderia indagar agora: “Arte então é a tecné dos gregos?” e como resposta podemos já esboçar algo no seguinte sentido: a técnica, aquilo que hoje conhecemos como técnica, que é o instrumento cujo intermédio o artista logra os seus fins, não esgota o sentido da arte, o sentido mais amplo da arte. A técnica está a serviço da arte assim como o corpo, no caso humano, está a serviço da inteligência e da vontade, que são as potências superiores da alma, e que, por sua vez, é o princípio substancial do corpo. Um corpo inanimado só pode ser dito humano, por exemplo, por analogia de atribuição, já que o corpo não atualiza, não é capaz, não tem potência de atualizar nenhum dos atos propriamente humanos. Fiquemos com isto no horizonte. Eu poderia sugerir outras definições, mas esta, para aquilo que nos interessa, me pareceu bastante cabível. A literatura é a expressão artística da realidade pela palavra, e a arte é essa reta razão no fazer que pressupõe o domínio, no caso da palavra, de um sem número de recursos, que vão dar ao escritor, aquele que é digno desse nome, a possibilidade de perceber e expressar os matizes semânticos que no caso de sua arte vão aflorar como espelhos da própria realidade representada. Então, alguns elementos eu trouxe aqui ao modo de uma classificação preliminar.
A escrita artística pressupõe o pleno domínio dos recursos expressivos por parte do escritor. O que se quer dizer com isto? Quer-se dizer com isto que o escritor precisa, antes de tudo, conhecer a gramática do próprio idioma a fundo. É impossível alguém dominar todas as possibilidades semânticas expressivas de uma língua se não conhece, pelo menos em linhas gerais, a ciência gramatical (o ideal é que conheça de maneira aprofundada), cuja normatividade não é como a da lei civil. A norma gramatical não é como a lei da cidade que obriga as consciências, se ela visa o bem comum. A gramática tem algo anterior a ela própria, que são os fatos da linguagem que ela codifica e classifica. Nenhuma língua é obra de gramáticos que entram em seu consultório de experimentos linguísticos e consegue gerar uma língua. A única “língua” que foi tentada nesse sentido foi o esperanto, e não deu certo justamente, pois, lhe faltava o lastro cultural sem o qual uma língua não pode ser dita língua. O conhecimento da gramática é fundamental para o escritor expressar-se de maneira artística, pois, a gramática codifica a índole do idioma.
É óbvio que um gramático pode dizer que certa construção é equivocada a luz do que se conhece da própria estrutura do idioma. Certas flexões de determinados verbos, a regularidade ou irregularidade de outros, que são os verbos defectivos, o que é um substantivo, o que é um nome, um pronome, um advérbio, um adjunto adnominal (no caso do português), ou seja, sem este cimento, digamos assim, elementar, é impossível forjar-se alguém capaz de expressar artisticamente a realidade pela palavra. Agora, tenhamos no horizonte a seguinte consideração: a língua, qualquer língua, não esgota aquilo que ela mesma procura expressar. Há entre ser e conhecer, e sempre haverá, uma zona de sombra. A língua procura expressar de maneira assintótica a realidade externa e tanto melhor o fará quanto mais perfeitamente aquele que se expressar, quer por escrito, quer por falado, consiga realmente passear por todos os meandros daquele idioma. Então, a gramática é um dos braços, é um dos tópicos, que fazem um escritor verdadeiro e outro é a leitura dos clássicos do próprio idioma.
Hoje, no Brasil, acontece uma coisa muito funesta. Os jovens que estão na faixa etária entre 25 e 40 anos padecem de um problema (estou alongando a juventude, pois, já passei dos 50 [risos], em uma espécie de benevolência ao meu favor, vamos alongar a juventude até os 40). Eles foram muito mal formadas com relação ao idioma português, tiveram pouco ou nenhum contato com os clássicos da língua, quase nenhuma gramática no sentido formal do termo. Não a troco de nada, o que se fala hoje no Brasil caminha para se transformar em um dialeto. Quem aqui tem contato com portugueses de maneira efetiva, sabe o que eu estou dizendo. O brasileiro contemporâneo, mesmo o brasileiro culto, tem dificuldade de perceber o que um português diz. Isso não se deve ao sotaque. É porque perdemos estruturas sintáticas! Nós perdemos as contrações pronominais várias! Eu tenho essa experiência diária em casa, pois, sou casado com uma portuguesa e é muito curioso ouvir a língua em suas formalidades propriamente da norma culta, pois, acabamos por aferir como isso se perdeu no Brasil. Há jovens brasileiros que estão angustiados e a angústia aumenta neles, porque eles nem sequer conseguem dar nome a dor que sentem.
