É possível retratar a providência na literatura?

Renato Moraes

É possível retratar a providência na literatura?

Antes de tudo, venho agradecer ao convite de participar deste congresso de literatura católica. Como iniciativa, só merece nosso apoio e gratidão por estarem fazendo isso e, por sorte, me coube um tema bastante caro. É um aspecto que, de algum modo, sempre mexe comigo quando se trata de literatura católica que é: “é possível representar a providência na literatura?”.

Como a gente pode tratar desse elemento fundamental da doutrina cristã, que de algum modo todos nós temos experiência pessoal, não tenho dúvida de que qualquer católico, que seja um pouco praticante, começa a ter relação com Deus, sente de algum modo. Mas não só sente, vê, de uma maneira até intelectual, a ação de Deus na própria alma dando sentido para as coisas que vão acontecendo, como uma inteligência por trás que vai nos guiando. Se isso é algo que nós topamos no dia a dia, como encaixar isso em uma obra literária? Para começar, a minha ideia é fazer uma breve introdução, depois eu falaria um pouco sobre a possibilidade ou não de haver ou não a providência; uma segunda parte, que seria sobre as formas de representar essa providência; e na terceira parte nós falaríamos de dois livros, rapidamente, só para darmos exemplos de obras que tratam de uma maneira que me parece interessante e relevante.

Então, para começarmos, no Cristianismo, como falávamos, temos a providência como uma verdade fundamental e eu lembro daquele trecho do evangelho, que, talvez, se a gente fosse falar o locus fundamental para entender a providência, é uma frase que se repete em outros evangelhos, eu pego aqui em São Mateus, capítulo 10, o Nosso Senhor fala: “Não se vendem dois passarinhos por um asse, no entanto, nenhum cai por terra sem a vontade do vosso Pai. Até os cabelos das vossas cabeças estão todos contados. Não temais, pois, bem mais que os pássaros valeis vós.”. É bem essa a ideia. Nenhum pássaro cai sem que Deus permita e também os fios de cabelo da nossa cabeça estão contados.

Nós sabemos, Deus é todo poderoso. Deus é infinito. Tudo que acontece, de algum modo, ou melhor, de algum modo não, de maneira radical, podemos dizer assim, acontece por vontade dele. Isso é um fato! Aceitar isso não é fácil. Principalmente quando você quer compor com outras realidades. O cristianismo tem esse problema. Chesterton dizia que é o paradoxo, você aceitar verdades que parecem que são excludentes umas às outras, mas você as aceita, não compondo, mas as levando até o fim. Você aceita que Deus, de fato, tem um poder total sobre as coisas e, por outro lado, você aceita a liberdade humana e o mérito humano de uma maneira profunda.

Então, como que nós podemos compaginar a liberdade com a providência? Essa é uma questão antiga na filosofia. Os gregos já começam a tratar disso antes do Cristianismo. Na idade média será um tema ao qual se irá voltar várias vezes. De um lado esse problema da liberdade. Outra questão relacionada à providência, inclusive, talvez seja, digamos assim, um argumento a favor do ateísmo com maior impacto e com maior força para as pessoas é: se Deus é onipotente e as coisas acontecem por vontade dEle, como se pode explicar o mal? Por que existe o mal? Então, ou Deus é onipotente ou Ele não é bom. Pois, se Ele fosse bom e onipotente, não poderia haver mal. São questões que realmente mexem conosco e que nos obrigam a pensar.

Há respostas muito boas para isso e uma delas, por exemplo, talvez seja a que tenha maior impacto, inclusive São Tomás de Aquino a utiliza quando vai tratar das provas da existência de Deus, é uma que Santo Agostinho oferece e é que Deus não permitiria o mal se Ele não pudesse, a partir daquele mal, trazer um bem maior ainda. Então, aquilo que nos parece mal, está inserido em um plano muito maior e que nós não vamos entender em todos os momentos qual a função de cada peça. Mas nós temos, em uma questão de acreditar por fé, que Deus em sua bondade, se permitiu algo ruim, vai fazer com que surjam bens daí. Lógico que o paradigma disso é o ato mais nefasto da história que trouxe o maior bem e estou falando a redenção, evidentemente. A morte do próprio Deus, de Cristo, o Deus encarnado, Jesus Cristo. Moralmente falando, o pior ato contra o único ser inocente, tirando Nossa Senhora. O próprio Deus é morto de uma maneira injusta, mas a partir dessa maldade tremenda há um ato de entrega absoluta que nos redime.

No Cristianismo nós aceitamos as verdades sem compor. De certo modo, elas como que se chocam. E acontece isso com relação à redenção também. O maior mal. O que seria o ato mais injusto. A derrota de Deus que acaba sendo a própria vitória. A redenção, sem dúvida, entrou em toda a nossa cultura. A ideia de um Deus que morre pelas pessoas. No filme como Matrix, por exemplo, que nunca seria um filme cristão, vemos que a própria estrutura do final do filme é uma coisa que é assim: o personagem principal morre para salvar a cidade, que por sinal recebe o nome de Sion, Sião. Tem aí esse tipo de figura, que literariamente como todo filme é um pouquinho pobre, mas esse filme é interessante.

É a ideia e a estrutura da redenção um pouco, digamos assim, diluída, que se coloca como uma grande história. É a grande história das nossas vidas. É a grande história do que ocorre. Então, a redenção é o exemplo da providência. Da ação da providência em que entra a liberdade, entra a vontade de Deus e um bem que se consegue grande a partir daquela situação toda. Da resposta, no caso, de Cristo.

Então, se nós pensamos isto, que há a ação de Deus por trás, que a vontade de Deus se realiza e, ao mesmo tempo, o ser humano é de fato livre, que o ser humano tem responsabilidade pelas suas ações, como é que nós fazemos para colocar isso dentro de uma obra literária? A gente vê a própria Bíblia, que traz várias histórias. São histórias reais. Algumas delas podemos falar que tem imagens e símbolos, mas nos aspectos fundamentais sabemos que é um livro histórico. Então, uma narrativa tem a ação dos personagens e deve ser de algum modo coerente. Personagens que agem de uma maneira fortuita, digamos assim, ao azar, seria impossível para nós compreendermos a ação deles. Logo, não seria possível fazer uma narrativa. A própria possibilidade de contar uma história supõe, que há lá, atores racionais. Não daria para construir um romance sobre uma colméia ou sobre uma alcatéia simplesmente. Não dá para fazer um romance. Só seria possível antropomorfizando esses animais. Você colocaria neles a capacidade de escolher e de pensar. Então, se a vontade de Deus passasse por cima da liberdade humana, se ela tornasse impossível a liberdade humana, não seria possível fazer romance como a gente entende. Não haveria quase que o dramatismo.

Vou tratar um pouco disso, a gente vai se explicar melhor. Já vamos ver. Mas ficaria, no mínimo, enfraquecido. As personagens estariam agindo de acordo com forças que elas mesmas não são absolutamente capazes de entender ou se fazer frente a elas e são arrastadas. Então, não teria sentido em falar de vilão, falar de herói, pois eles estariam simplesmente cumprindo um destino que lhes foi dado. Ou então, a gente poderia simplesmente, vamos dizer assim, como encaixar a providência, como retratá-la na obra literária.

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