Clístenes H. Fernandez
A Idade Média Latina
Sempre o latim foi parte do currículo de todas as escolas e foi uma matéria a ser estudada desde o Império Romano, onde essa língua surge e se estabelece como língua oficial do Estado, da burocracia e também da literatura, nas mais diversas formas de expressão escrita. O latim surge nesse Império Romano e, a partir daí se torna a matéria principal a que um estudante deve se dedicar.
Isso não para ao longo dos milénios, podemos dizer assim. Até hoje existem escolas, não em todos os países e nem todas as escolas de todos os países, obviamente, nem mesmo nas escolas do Ocidente, mas na Europa o latim continua a ser ensinado, na medida do possível. Não vamos entrar aqui na eficácia do modo como é ensinado ou na finalidade deste estudo. Mas sempre se enxergou que era necessário estudar essa língua, tanto dentro da Igreja, para a formação dos sacerdotes e para a formação dos religiosos, e na formação de professores universitário e na formação de qualquer pessoas que fosse se dedicar a qualquer estudo, qualquer área, qualquer província do conhecimento, na medida em que qualquer intelectual estudou. O médico estudava latim, o jurista estudava latim, um teólogo, um filósofo, seja lá qual for a profissão, todas estudavam latim.
Hoje, quando nós pensamos em estudar latim, existem uma série de autores que devem ser conhecidos pelos estudantes e, por isso, recorrem ao latim. Dentro do ambiente universitário, seria o cânone de literatura antiga, principalmente. Então, vamos falar dos três grandes poetas: Virgílio, Ovídio e Horácio. O pessoal do Direito gosta muito de estudar Cícero e os códigos que surgem de forma escrita e são compilados em Constantinopla e por aí a fora. Então, cada um vai procurar dentro de sua própria área os textos que mais lhe interessam.
Dentro da tradição católica, existe a liturgia que desperta o interesse da parte de muita gente pelo latim. A pessoa, então, quer assistir à Missa Tridentina ou mesmo a Missa de Paulo VI no Vaticano, por exemplo, e em muitos outros lugares ela é celebrada em latim. A pessoa quer cantar cantos litúrgicos, canto gregoriano ou mesmo mais modernos como uma missa de Mozart. “Eu vou estudar a língua em que essa música está escrita.”, “Eu gosto muito de Stabat Mater de Pergolesi, então vou estudar latim para conhecer esse texto.”. Além disso, obviamente, tem a parte da Teologia. A pessoa, dentro da minha experiência, diz “eu quero ler Santo Tomás no original, por isso eu quero ler latim”. É uma motivação muito nobre, obviamente, e somente Santo Tomás já vale o esforço, poder ler a obra completa de Santo Tomás, o que não precisaremos de mais de seis meses ou um ano. A questão é que nada disso para por aí.
O latim não é só isso que eu falei. E eu digo “só isso”. Parece ser muito coisa e é provável que muita pouca gente na história da humanidade tenha lido “só isso” que eu me referi: liturgia, Cícero, Santo Tomás… Isso tudo é muito importante, mas eu não diria nem que é o mais importante, pois isso é muito difícil de ser dito. A questão é que em latim existe um mundo. É muita coisa. E é muita coisa que não está em somente três ou quatro autores que escreveram em latim. Nós estamos falando de toda uma civilização que escreveu em latim, da Idade Antiga à Idade Moderna.
Nesta palestra para este congresso, iremos falar de Idade Média. É desse período de extrema riqueza literária – principalmente, já que esse é um congresso de literatura – que é muitas vezes negligenciado. A gente passa por cima. A pessoa estuda latim, lê um pouquinho da Eneida, lê uma oração de Cícero, Tito Lívio, aí vai para Idade Média e lê Santo Agostinho, lê São Tomás, “muito bem, eu estudei latim e eu leio latim.”. Não que isto esteja errado. Mas eu acho que o esforço que uma pessoa tem por aprender latim é algo que merece muito mais e existe muito mais coisa para ser feita.
Existe toda a Idade Média com textos dos mais variados estilos, nos mais variados gêneros literários. Uns mais ricos, uns mais geniais, outros nem tanto. Por vezes, um latim paupérrimo. Por vezes, um latim excelente. Em termos de língua, assim como em qualquer outra língua, se falarmos que o português de hoje é pior que o de 100 anos atrás, tenho certeza que haviam pessoa a 100 anos atrás que escreveram muito mal e que, hoje, existem pessoas que escrevem bem. Então, isso não pode ser um critério de que o latim medieval é mais pobre, como uma mini-história do latim: no início existiu o latim do teatro de Plauto e Terêncio, depois a coisa foi crescendo com Ênio e Catulo e chegamos no apogeu com a prosa e com Virgílio nós temos o apogeu do verso e depois veio a Idade das Trevas e o latim virou bárbaro e era terrível. Terrivelmente, escrito até que os humanistas chegaram e salvaram todo o latim.”. É pueril nós pensarmos assim. O que nós vemos aqui é que grande parte das pessoas não têm noção dos autores, que são inúmeros. Me perguntaram: qual o poeta medieval que eu devo ler?”. Não sei, leia de tudo um pouco! Não vai custar tanto assim.
Então, nós temos, no século V, a queda do Império Romano enquanto guardião da civilidade, dos costumes, das leis, dos territórios, e por aí a fora. Nós temos o contato com os povos ditos bárbaros, e realmente assim o foi. As mais diferentes etnias, chamadas bárbaras, migram para o sul da Europa e vão desfazendo tudo que encontram pela frente. Então, chega a uma certa localidade e ali, onde antes existia uma segurança civil por parte do poder militar de Roma, que agora passa a não existir mais, as leis não estão mais vigentes e a língua passa a sofrer com isso. As escolas, as que existiam, param de funcionar. E é claro que a língua sofrerá enormemente.
