As Confissões de Santo Agostinho

Victor Sales

As Confissões de Santo Agostinho

De toda a literatura católica tão rica, tão fecunda, tão intensa e tão profunda, “As confissões” de Santo Agostinho ocupam um papel privilegiado. Poucos escritores e autores, ao longo da tradição literária ocidental, tiveram tanta consciência do papel da literatura na intimidade com Deus e no modo como homem pode se aproximar de Deus e como o homem pode se conhecer nesse processo.

Então, “As confissões” de Santo Agostinho é o monumento literário da autobiografia espiritual do ocidente latino. Santo Agostinho é, sem nenhuma dúvida, um dos maiores escritores do ocidente e um dos fundadores da própria tradição literária católica.

Ele é um autor muito complexo e de uma riqueza superabundante. Então, a melhor imagem para a gente começar a refletir sobre Santo Agostinho é de um vulcão em erupção. Mas de um vulcão em ebulição constante. É um retórico. As palavras fluem como que em uma torrente de um vulcão muito poderoso. De um amor muito pujante. De uma intensidade, de uma vibração e de uma voltagem, incomparável, inacreditável. E ele logo percebeu que, se esse amor não estivesse ordenado e não estivesse voltado à uma fonte eterna e infinita de significado, de bondade e de beleza, ele iria sucumbir. Ele iria se afogar. Ele iria naufragar.

A vida de Santo Agostinho é a vida, portanto, deste grande navio que não tinha para onde ir. De um grande amor que não sabia a quem amar, não sabia o que amar, não sabia como amar. Cujo amor revela que ele é feito para alguma coisa que é proporcional a esse amor. E, se esse amor é eterno, infinito e transcendente e, se esse amor é tão vibrante, assim, deve haver alguém, ou algo, proporcional a esse amor. Então, o amor no coração de Santo Agostinho é a prova de que Deus existe. Nós todos sabemos que Santo Agostinho é um dos grandes filósofos e teólogos da tradição ocidental, mas, antes de teólogo e filósofo, Santo Agostinho é um apaixonado. É um amante. É o doutor do amor. Como pai e doutor da Igreja, é o doutor da graça. E eu vou já fazer uma explicação e contextualização de quem é.

Mas eu quero começar deixando claro que Santo Agostinho, como muito poucos autores da tradição literária católica, é alguém que teve na literatura, especificamente, no ato de ler e no ato de escrever, um momento de intimidade com Deus, de autoconhecimento e de exame radical de consciência. De descoberta de si, de descoberta de Deus e de descoberta dos outros com os quais ele se relaciona em uma dialética moral de “quem és tú?” , “quem sou eu?”, “quem somos nós, diante de Deus?”, “como se organiza da cidade dos homens para a cidade de Deus?” e “qual a natureza trinitária do homem (corpo, alma e espírito) consoante a natureza trinitária de Deus (Pai, Filho e Espírito Santo)?”. Então, a teologia, a antropologia e a ética de Santo Agostinho é sempre pautada em uma experiência existencial e real. Se tem um autor sincero na literatura, é Santo Agostinho.

Com isso, ele funda esse princípio da sinceridade radical que só pode se dar quando se exclui todos os condicionamentos e todos os segredos, todas as ressalvas que a sociedade nos obriga a fazer. Um apaixonado pela poesia, um apaixonado pelo teatro, um retórico que sabe muito bem que a linguagem pode revelar e a linguagem pode esconder, e que a linguagem é um meio termo, um crepúsculo ou uma aurora, de um lusco fusco, de um chiaroscuro, de claro-escuro entre o que revela e esconde. Para ele, o que esconde são as paixões. O que obscurece, são as emoções desordenadas. É exatamente o mesmo amor que pode iluminar. Então, há uma complexidade em tudo que Santo Agostinho escreveu, pensou e leu, pois ele viveu tudo isso apaixonadamente. Ele viveu nesses polos.

Então, antes de emergir no “As Confissões”, eu gostaria de fazer uma introdução geral ao autor, que é dessa riqueza incomensurável. Trata-se de um filósofo, um teólogo, um santo. A gente tem um material muito grande para estudar Santo Agostinho. A gente pode passar a vida inteira lendo Santo Agostinho que não vamos esgotar a obra dele. É o Padre da Igreja Latina mais influente. A sua obra só perde em termos de influência e impacto na cultura cristã medieval para a própria Bíblia, cujo estudo e leitura ele tanto incentivou e tanto promoveu como o grande exegeta das Escrituras, o grande intérprete, ao lado de dois dos seus interlocutores e dois dos santos com que ele interagiu: Santo Ambrósio de Milão e São Jerônimo, este ele, inclusive, polemizou. Depois, aquele que vai tornar a obra de Santo Agostinho o grande cânone literário e espiritual da Idade Média, que é São Gregório Magno, o quarto grande Pai da Igreja Latina.

Então, é um desafio hermenêutico muito grande lidar com Santo Agostinho. É um desafio interpretativo lidar com um autor que é sempre maior que o intérprete. Você precisa de São Tomás de Aquino para interpretar Santo Agostinho e, como nós não somos São Tomás de Aquino, nós estamos em uma situação de inferioridade tão grande que é muito fácil reduzi-lo ao nosso próprio umbigo. Como diziam os escolásticos: o conteúdo se adapta ao continente. Então, esse desafio hermenêutico, é o desafio de ter consciência que, como a Bíblia, é um autor recebido a cada século, a cada época, e reinterpretado.

A gente está sempre condicionado a uma cadeia de interpretações intermediárias entre nós e Santo Agostinho. Por exemplo, é o autor mais citado por São Tomás de Aquino na “Suma Teológica”. É a grande autoridade teológica para Tomás de Aquino, que é o Doutor Comum da Igreja, o autor que estruturou e sistematizou definitivamente a doutrina católica. Veja que ele também influenciou muito a reforma protestante de Lutero e de Calvino. Lutero era um monge agostiniano dramatizando sua própria existência e tendo “As confissões” como grande obra de encontro pessoal e existencial com Deus. Calvino foi influenciado com toda a doutrina da predestinação e da graça que é agostiniana. E não só na Teologia e na espiritualidade Santo Agostinho foi muito influente, mas também nas Ciências Humanas. Na Psicologia, na Sociologia, no Direito, na Filosofia da Linguagem e na Filosofia da História.

Santo Agostinho não é um autor que escreveu uma obra importante. É um autor que escreveu várias obras decisivas e que se tornaram o modelo para o teólogo, filósofo, escritor de espiritualidade, de exegeta, de comentador dos Salmos, do Gêneses, das Cartas… Então, é, literalmente, uma montanha cujo topo você não vai chegar e que você vai circundando e vai escalando e vai encontrando riqueza em uma carta, em um sermão. “Não é possível, um homem escreveu uma biblioteca inteira que a gente não vai ler toda durante nossa vida.”. Então, foi um homem que Deus utilizou com muita finura e delicadeza, e que mostra que a sua entrega intelectual, espiritual e emocional rendeu muitos frutos para a vida da Igreja, para a inteligência humana e para o autoconhecimento humano. Por que eu estou enfatizando isso? Porque ele escreveu isto!

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