Remo Mannarino Filho
Santa Teresa D´Ávila
Eu sou Remo Mannarino Filho. Eu sou professor do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Lá eu sou membro do Núcleo de Filosofia Antiga e também sou membro do corpo docente do Programa de Especialização em Filosofia Antiga. Eu tenho uma pesquisa muito focada na área de Filosofia Antiga. Da Filosofia e literatura da antiguidade tardia e do início da Idade Média. E eu agradeço empenhadamente o gentil convite do Instituto Hugo de São Vítor, da Sociedade Chesterton Brasil e do site O Dialético para que eu proferisse essa palestra. Eu não sou propriamente um especialista em Renascença espanhola, nem em Santa Teresa D´Ávila, mas eu sou um leitor bastante entusiasmado e o gentil convite se deve, em grande medida, a isso.
Então, o meu papel, aqui hoje é de falar um pouco sobre Santa Teresa D´Ávila, sobre a sua obra extraordinária e eu acho que uma boa maneira de começar é contextualizando um pouco essa obra na história da tradição mística da Igreja Católica e no seu contexto de época, seu contexto político, religioso, espiritual, no seu contexto cultural, de uma figura da renascença espanhola.
Existe um lugar comum, que é bastante difundido, segundo o qual o ciclo moderno de pensamento, civilização e cultura, foi um ciclo que deu muita ênfase ao indivíduo. Isto é, deu muita ênfase a instituição e a figura individual. Essa ênfase, que seria ao mesmo tempo epistemológica, moral, política e também, religiosa, teria também se desdobrado em vários campos. Ela teria se manifestado na reforma protestante, por exemplo, com a sua grande ênfase na figura do indivíduo, do fiel individual, no livre exame das escrituras, etc.
Por outro lado, teria se manifestado também claramente em um certo impulso filosófico, daí um tempo fortemente marcado pela obra do René Descartes, por exemplo, de todos os filósofos que dão início a esse ciclo do século XVI. Mais tarde teria se cristalizado também em instituições políticas, etc.
Se a gente leva esse lugar comum à sério, seria interessante analisar a partir dele, de que maneira a figura de Santa Teresa D´Ávila se encaixa nesse contexto. Aí seria interessante enxergá-la, ao mesmo tempo, como uma contraparte desse ciclo e também como um contraponto a ele.
Existe um aspecto a partir do qual a obra de Teresa D´Ávila é uma obra bastante típica do século XVI da Espanha, uma obra que responde as aflições, que responde às inquietudes e angústias do seu tempo, que se reporta a elas. Mas existe um ponto, um aspecto, da obra de Santa Teresa que é claramente atemporal. Não à toa, ela é uma autora que é muito lida até hoje e é uma referência de espiritualidade tão sólida para cristandade, mas não só já que chega a extrapolar os limites da cristandade sendo lida por pessoas como obra literária, filosófica, e assim por diante.
A obra de Teresa D´Ávila, antes de ser uma ruptura com o ciclo medieval que se encerra e um ciclo moderno que se inicia, é uma espécie de ponte, pois se ela responde às inquietudes do seu tempo. Ela o faz solidamente ancorada na tradição espiritual da Igreja, e o faz de maneira bastante consciente.
Santa Teresa D´Ávila faz muita questão de localizar a sua obra como uma obra que responde a esta tradição, que se ancora nela, e que está, de alguma maneira, sob a tutela espiritual da Igreja. Santa Teresa D´Ávila é uma religiosa muitíssimo devota. É uma figura que põe muita ênfase na importância da obediência, da resignação aos preceitos da Igreja e assim por diante.
Então, se por um lado, ela é sim a autora de uma obra bastante típica da Renascença espanhola, por outro lado é evidente que a obra dela por ter esse aspecto muito atemporal, ela poderia ter sido lida por cristãos do século I, como é lida ainda, abundantemente, com muita influência, por cristãos, estudiosos, do século XX e do século XXI. E eu acho que essa é uma boa maneira de começar a contextualizar essa obra e falar sobre ela.
A obra de Santa Teresa D´Ávila tem aspectos literários bastante curiosos, bastante dignos de nota. Em primeiro lugar, Teresa D´Ávila não era uma acadêmica. Ela não era exatamente um erudita, embora ela tivesse recebido formação, primeiro em um convento de agostinianas onde ela estudou e depois a formação das irmãs carmelitas no Mosteiro da Encarnação onde ela fez os seus votos. Embora ela tivesse essa formação, ela claramente não era uma erudita. Muito claramente não era uma autora cuja ambição fosse a de escrever tratados de grandes circulações e nada parecido. Na verdade, existe toda uma informalidade no texto de Santa Teresa que é muito evidente para o leitor. Uma informalidade que na verdade é um dos tesouros dessa obra. Existe um mosteiro perto de Madrid que resguarda os manuscritos de Santa Tereza, os originais da Obra, escritos pela mão dela, e as vezes anotados e sublinhados pelos seus superiores.
A primeira coisa que a gente percebe nesses manuscritos é que o texto não está pontuado. Isso era uma prática de escrita em alguns lugares na época e, o que chamamos de originais de Santa Teresa, são originais corrigidos por eruditos que geraram as edições que passaram a circular.
Com todo esse grau de informalidade, não foi uma obra pensada para grande circulação. A gente vai ver isso no caso de suas três grandes obras. Vou comentar uma a uma. O “Livro da vida”, que é uma espécie de autobiografia espiritual dela. A “Via de perfeição”, que é uma espécie de direção espiritual para as suas monjas. E “O castelo interior” (ou “As sete moradas), que é a sua grande obra final. Nenhuma delas foi pensada para grande circulação. Quando eu digo que ela não foi uma obra pensada para grande circulação, Rowan Williams, um teólogo anglicano, fez um estudo em que ele percebeu que todas as citações que Santa Teresa faz as Sagradas Escrituras são citações retiradas da liturgia, ou seja, das próprias leituras na Missa, ou do ofício divino. Não é como se ela fizesse uma obra empenhada em buscar citações de grandes autores que ela cita muito escassamente em sua obra, ou mesmo das Sagradas Escrituras. As citações são aquelas que lhe ocorrem e ela cita de memória, de maneira bastante informal. Isso faz com que a obra dela não tenha, em nenhum dos seus escritos, um caráter grandemente tratadista. Não é uma obra, como eu disse, de acadêmicos ou eruditos.
Mas se não é uma obra, propriamente, tratadista, isso não significa que não tenha uma grande organicidade, aliás, o leitor percebe claramente uma correspondência entre seus grandes escritos. Especialmente entre essas três obras.
Eu mencionei essa curiosidade sobre sua obra, os originais escritos para os seus superiores, no caso do “Livro da vida” para as suas monjas, da “Via de perfeição” e “Castelo interior”, estes originais não estão sequer pontuados. Isso não impediu que, por exemplo, a Academia Real Espanhola a pusesse como uma espécie de doutora da língua espanhola, uma das grandes referências para a prosa espanhola, e uma das grandes fundadoras da prosa espanhola, junto de Miguel de Cervantes e outros grandes escritores. Pois, conforme a gente vê, embora em seus escritos o tempo inteiro ela diga que não tinha a intenção de escrever, ela escreve sob obediência, muitas vezes enfrentando resistência interior, e a gente percebe com muita clareza o imenso talento para a escrita e o imenso talento literário que ela tinha.
Além de ser uma grande Santa e uma grande autora espiritual e mística, Teresa D´Ávila também é uma escritora de extraordinário talento, o que se percebe facilmente na leitura das primeiras páginas de sua obra. Ela tem um estilo de escrita bastante cativante e o efeito dessa escrita que ela tem, às vezes muito informal e às vezes muito intimista. A santa, por exemplo, o tempo inteiro ri de si mesma, fala de suas dificuldades de escrever, e menciona o fato de que há muito tempo não pega o manuscrito, e registra certos traços circunstanciais como “há quanto tempo não me lembro deste escrito”, etc. O resultado no leitor é o de gerar uma espécie de real intimidade com a Santa. É uma experiência que todo mundo tem. Os escritos de Santa Teresa são imensamente poderosos por isso.
Mais adiante, sobre o “Livro da vida”, a gente pode falar de experiências importantes de conversão que houve na leitura desses textos. Isso é uma curiosa novidade estilística. A gente não conhece no Medievo Tardio nada que se assemelhe e que, no entanto, a aproxima estilisticamente sobre certos aspectos ao grande Santo Agostinho. Agostinho de Hipona, que é um modelo espiritual para ela, por muitas razões que nós passaremos a analisar daqui a pouco.
