Francisco Escorsim
A Bíblia e a Literatura Católica
Olá, seja bem-vindo! Eu sou Francisco Escorsim e eu vou fazer uma palestra para este congresso de literatura católica sobre a Bíblia e a literatura, as relações entre elas. Para quem não me conhece, eu já trabalho há quase uma década com literatura e a menos tempo, mas de maneira mais intensa, com essa relação entre Bíblia e literatura, e para ser mais específico, entre mitologia e literatura. Um dos autores ao qual mais me dediquei foi o Northrop Frye, que é em quem vou me basear muito para conversar com vocês sobre isso, sobre esse tema.
A ideia da palestra é muito mais de jogar uma série de sugestões para dialogar com todas as demais palestras que tem nesse congresso. Mais do que especificar essa relação entre Bíblia e literatura, mas aprofundá-la especificamente. Então, antes de começar, eu gostaria de agradecer ao pessoal do congresso ao qual eu tive a honra de ser convidado. Agradeço pela confiança neste trabalho e gostaria de convidar todos vocês para que assistam tudo que há nesse congresso, que deve ser um marco tanto para a literatura quanto para os católicos, que não costumam se dedicar a literatura como deveriam. Eu espero que minha palestra ajude nesse aspecto, que seja um incentivo e te anime a conhecer mais da literatura, pois você vai ver que vai fazer diferença na compreensão da própria Bíblia inclusive.
Então, para começarmos essa conversa, quero deixar dois problemas que nós temos ao tratar de literatura e Bíblia, e da relação dessas duas coisas. Eu estou acostumado a falar para um público em que a Bíblia é vista e tratada como sendo apenas literatura, quando, é óbvio, que ela é mais que literatura. Então, eu geralmente tenho que ter um enfoque sobre a Bíblia que é diferente do que devo ter para aquilo que pretendo fazer aqui, pois estou pressupondo que a maior parte do público vai ser de católico, para o qual o ponto de partida é exatamente o oposto, ao qual a Bíblia tem um valor infinitamente maior que qualquer literatura sendo algo central na vida de cada um de nós e, portanto, a relação dela com a literatura será vista de outra maneira. Acontece que esses dois pontos de vista carregam alguns problemas e eles podem ser comuns de um lado para o outro.
É fácil visualizar os problemas de boa parte dos críticos do século XX, ou mesmo de anteriores. O Northrop Frye, que é um canadense e que não é católico, é protestante e chegou a ser pastor da Igreja Nacional do Canadá, coisa que eu não faço a mínima ideia do que seja, mas ele era um desses, então, não é um católico. Mas ele é um dos poucos nesse trabalho sobre a Bíblia e literatura, que chamou atenção para um aspecto central propriamente literário da Bíblia. Não para transformar a Bíblia ou rebaixá-la, vamos dizer assim, apenas ao aspecto literário, que é o que a maior parte dos estudiosos acabam fazendo, pois acabam tratando a Bíblia como um mito como todos os outros ao fazerem um trabalho de mitologia comparada, retirando aspectos comuns de vários mitos, resumindo os mitos naquilo que lhes é comum, sendo pouca coisa essencial.
Você vai ter vários estudiosos como o Joseph Campbell, famoso pela jornada do herói, onde ele vai reunir diversas histórias arquetípicas e vai perceber que essas histórias se aplicam a um monte de coisas e que boa parte da literatura é uma aplicação dessas estruturas arquetípicas contidas nos mitos. Você vai ter Mircea Eliade. Você vai ter inúmeros outros estudiosos trabalhando com mitologia e tratando a Bíblia como mais um desses mitos, que é, basicamente, um ponto de vista no qual o mito é tratado como tendo uma espécie de autoridade social em um determinado momento da história de certos povos, de certas civilizações, vamos dizer assim. Depois, essa autoridade se perde de alguma maneira e aquilo que era mito se torna apenas literatura, no sentido de que ela não tem mais autoridade social, mas é uma história que vale a pena ser conhecida, que vai trazer uma série de conhecimentos, assim como se lê qualquer literatura. Então, no fim das contas, o que esses autores acabam fazendo com a Bíblia, é rebaixar a Bíblia a literatura e, fazendo isso, perdem o que ela tem de mais essencial e o que ela é de fato.
Essa postura, de tratar a Bíblia reduzida à literatura apenas, não é estranha também para aquele que trata a Bíblia como sendo o centro de toda literatura do ponto de vista católico. É compreensível! A gente consegue compreender o ponto de vista de quem trata a Bíblia assim quando a gente passa, como católicos, a considerar outros mitos que não sejam a Bíblia. Então, para quem é um católico, um cristãos, por assim dizer, a Bíblia é um livro da verdade, da palavra de Deus e, também, todos os outros mitos que representam, condensam ou geraram outras religiões e civilizações são tratadas como literatura. Como aspectos mitológicos, que tem autoridade, etc. Exatamente como o pessoal que não é cristão trata a Bíblia, a gente acaba tratando a mitologia alheia. Então, a gente pega a mitologia greco-romana, ou mesmo o Corão dos Islâmicos, que estão dentro de cosmovisão Bíblica também, os Vedas, etc e tal, todas as outras mitologias se tornam, não digo histórias da carochinha, mas ficção, tentativas humanas de chegar até Deus. Mas o único mito verdadeiro seria a Bíblia. Então, é completamente possível compreender, como católico, essa postura de quem trata a Bíblia não como sendo a Bíblia, mas como sendo literatura, pois é assim que a gente trata também a dos outros. Então, aí começa a aparecer o problema de nós, católicos, com a própria relação com a Bíblia. Porque como ela tem uma densidade, um valor, uma finalidade muito maior que a literatura, o nosso risco e o nosso problema é justamente desconsiderar o aspecto literário, que é o que dá forma a Bíblia no fim das contas.
Ao desconsiderar esse aspecto literário partindo direto para o aspecto alegórico do que a Bíblia nos diz sobre a vida, de como devemos agir, ou mesmo no aspecto doutrinal, se tirando uma série de conhecimento da Bíblia, quando você perde essa base literária, como se fosse menos importante, você acaba perdendo quase tudo que a Bíblia tem para dar. Boa parte dos seu trato com as coisas católicas e com a tradição, é bem provável que fique engessado. Tem uma famosa passagem da Bíblia que diz sobre a letra e o espírito. A Bíblia é uma letra e ela precisa estar animada de um certo espírito porque a letra sem espírito é morta, não significa nada. Logo, um dos riscos que nós, católicos temos ao lidar com a Bíblia e, de certo modo, encará-la desconsiderando esse aspecto mais literário, é acabar transformando a Bíblia em uma espécie de ídolo. É algo que acaba tornando a nossa relação com a Bíblia muito mais distante, muito mais complicada do que deveria ser. A ponto de nós não nos permitirmos certas perguntas que são naturais de serem feitas quando se começa a ler.
Dou o exemplo do Gênesis quando você começa a ler. Tem horas ali que você se pergunta “o que isso significa?”, de repente está pairando sobre as águas, tem água em cima, tem água embaixo, tem água no meio, tem água para tudo quanto é lado, e você se pergunta “de que água ele está falando? o que é isso?”. Se isso fosse em um livro de literatura, você simplesmente começaria a conversar com esse texto. Se perguntaria de onde vem isso tudo. Podemos pegar outra passagem como o do sacrifício de Isaque por Abraão. Quando Deus chega para Abraão, do nada, e diz: “Abraão, pega teu filho e mata”, você fica : ou, ei, como assim?. Então, quando você tem uma relação com a Bíblia que não é uma relação que permita a sua imaginação fazer essas perguntas e, de certo modo, se “incomodar” com essas coisas, você acaba se fechando para tudo que a Bíblia tem para te dar com relação a tensão da existência humana, do drama humana, da dificuldade de você escutar a Palavra de Deus, de saber o que Deus quer de você para essa vida, para ficar apenas com uma relação assim: “Deus mandou, acabou, pronto, não vou pensar mais a respeito.”. Você pode engessar muito as coisas quando você parte para esse ponto de vista. Na própria história do Cristianismo, a relação com a Bíblia se torna central para a gente compreender, inclusive, as divisões que houve no Cristianismo.
A reforma protestante está na base da relação dos cristãos com a Bíblia. Uma das coisas que os protestantes alertam a nós, católicos, é a nossa relação com os santos. Existe o risco evidente da gente começar a idolatrar homens e mulheres que não são o Cristo, que não são o próprio Deus. Mas, ao mesmo tempo, esse risco que os católicos têm em maior grau de criar ídolos, os protestantes têm com um único, que é a própria Bíblia. É o risco de transformar a Bíblia em um ídolo, achando que ali está Deus e não a Palavra de Deus e, com isso, perdendo o aspecto de que a Bíblia também tem uma construção histórica, ou seja, também é uma encarnação do Verbo Divino, digamos assim. Pois ela surge em um determinado momento da história. Ela não existia antes. Ela se consolida mais propriamente a partir do século IV para a Igreja. E como ficavam os primeiros cristãos? Vejam, demorou uns quatro séculos para a coisa ficar clara. Naquela época, todo mundo era católico e, se demorou quatro séculos, façam uma comparação com a história do Brasil. Nós estamos no século XXI. É como se do século XVI até agora nós não tivéssemos Bíblia, por exemplo. Quatro séculos! Quanta História, quanta confusão, quantas vozes divergentes, quantas autoridades, quantos santos! E isso já está lá desde o comecinho, pois quando você lê as cartas de São Paulo, você vê os Atos dos Apóstolos, já tinha treta de São Paulo com São Pedro. Já tinha que fazer as reuniões, os concílios para saber o que vale, o que não vale. Era sempre algo complicado. Então, demora muito tempo selecionar qual livro vale e qual não vale. De todos os relatos sobre a vida de Jesus, quais vão ficar efetivamente. Então, a tranquilidade que a gente tem hoje de que a Bíblia é a Bíblia, durante quatro séculos não existia. Mesmo depois, houveram vários concílios, até o Concílio de Trento, no século XVI, teve que reafirmar quais eram as listas válidas dos livros.
