Marcus Boeira
Fiodor Dostoiévski
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao convite de participar deste congresso de literatura e dizer que, para mim, é uma honra participar deste congresso de literatura Católica. Principalmente pelo carinho que tenho por essa escola, por ter de alguma maneira participado na sua fundação lá atrás. E também muito me honra a oportunidade de falar sobre um autor que me é muito caro. Um autor que tem uma importância extraordinária na minha formação e que, de alguma maneira, se apresenta como um autor, cuja obra é absolutamente iluminadora para a civilização, que é o Dostoiévski.
Dostoiévski é um autor absolutamente único, sui generis, obviamente, patrono do que nós podemos convencionar como literatura russa porque, junto com Tolstoi, talvez seja o maior escritor de língua russa (de língua eslava, talvez). O sujeito que pode ser visto aqui como o mediador entre o Cristianismo ortodoxo e uma Rússia que estava ali no tempo de Dostoiévski em preparo rumo ao socialismo e rumo ao século XX. Claro que um autor como esse, complexo como é, apresenta uma variedade de nuances e uma variedade de pontos de vista que nos permite analisar a obra dele segundo certas categorias específicas. Nós poderíamos, a título de exemplo, fazer uma análise sobre a estética verbal de Dostoiévski como Bakhtin fez, por exemplo. Nós faríamos uma análise das estruturas narrativas da obra de Dostoiévski. Nós também poderíamos fazer uma análise de cunho sócio-político, ou sociológico e político, a partir de alguns dos contos e algumas das obras de Dostoiévski. Justamente tentando verificar ali o que há de uma crítica, digamos assim, ao socialismo como um todo e uma crítica ao mesmo tempo ao Cristianismo Católico Romano.
O Dostoiévski é um autor muito influenciado pela tradição ortodoxa, pelo cristianismo ortodoxo. É um autor que está mergulhado nessa tradição. E, o fato mesmo de estar mergulhado nesta tradição, faz com que, obviamente, a sua obra apresente um fundo narrativo em sintonia com a forma através da qual essa tradição – a tradição ortodoxa – atravessou os séculos e formou ao mesmo tempo uma tradição baseada em uma pesquisa racional e em uma pesquisa teológica simultaneamente.
Nós percebemos, na obra de Dostoiévski, essa fortíssima influência de um cristianismo ortodoxo. Ainda que, no fundo, toda a obra de Dostoiévski contenha uma característica muito especial, que é única entre todos os grandes escritores russos, que é essa tentativa de mergulhar densa e profundamente nos mistérios constitutivos da consciência humana e tentar analisar como esses mistérios acabam permitindo uma anamnésis, um mergulho profundo para dentro de si mesmo. As personagens que se apresentam nas narrativas dos contos e das obras maiores de Dostoiévski, apresentam justamente esse horizonte de tensões. A consciência é, de alguma maneira, apresentada ao leitor, não pelo que ela contenha de manifestação pública apenas, ou não pelo que ela contenha, digamos assim, de elementos causais para cujo os efeitos, as relações sociais, as relações humanas ali travadas, serão necessariamente dirigidas, direcionadas ou provocadas como efeitos que são para além do horizonte dos personagens.
Não apenas isso, mas as consciências analisadas das personagens apresentam um fundo narrativo mais denso de significados e significação. O que exige, por sua vez, do leitor e até a título de convite, um profundo mergulho para dentro de si mesmo. Como se o leitor fosse a todo momento questionado no seu interior e convidado a sondar partes da sua existência e da sua condição, que ele talvez não tivesse feito antes. Ou que, talvez, mesmo tendo feito, poderia não ter prestado a atenção devida a esses pontos da sua constituição, da sua formação.
É possível dizer que o Dostoiévski, ele é um autor que de alguma maneira apresenta uma tensão inicial nas suas obras. Uma tensão entre a consciência e a personalidade das personagens. A forma como uma personagem é constituída e apresentada, uma espécie de estética dos afetos humanos, que se manifesta de pronto e depois o mistério que sobrevém, logo em seguida, e que convida o leitor a entrar em um campo mais denso. Um campo que exige uma entrada mais significativa para dentro desses personagens e que não se resolve apenas naquela estética primeva, ou primitiva, da personalidade como tal, mas que justamente vai demandar do leitor uma atenção maior ao nível de consciência mais profundo. Então, se nós analisarmos do ponto de vista geral, isto está em maior ou menor medida em todos os contos e em todas as obras do nosso autor. Em todas elas, essa condição tensional entre personalidade e consciência já se mostra, se apresenta.
Como já havíamos falado antes, o Dostoiévski permite uma variedade de pontos de partida. Nós podemos fazer uma análise da psicologia profunda na obra do Dostoiévski tentando analisar como se discriminam as pulsões humanas e como essas pulsões se temperam nos relacionamentos, e como esses relacionamentos, por sua vez, serão inteligidos, não apenas pelo nível de contradições, oposições e contrastes que esses relacionamentos apresentam, mas, mais profundamente, como esses relacionamentos vão apresentando ao leitor um itinerário profundo desses níveis mais escalares de consciência. É como se, nessas relações, a escala cognitiva de apreensão dos sentidos fosse cada vez mais aberta ao leitor. Quer dizer, como se ela estivesse ali mimetizada no início, e a medida em que o leitor vai entrando, essa escala vai se ampliando e, ao mesmo tempo, se mostrando mais claramente para o leitor.
Então, óbvio, nós estamos diante de um grande autor. E, por isso mesmo, é muito difícil nós estabelecermos um ponto de partida universal na obra dele. O ponto de partida universal só pode ser esse: a questão da consciência das personagens. Qualquer outro seria temerário, pois nós teríamos que entrar especificamente em uma ou outra obra para ver como se determina isso. Mas algumas questões me parecem bastante universais na obra do Dostoiévski. Uma delas, por exemplo, é esse compromisso, não só biográfico, mas o compromisso quase de sentido de vida do autor com aquela ideia da mãe Rússia, da Pátria Mãe que se expande. Uma visão até escatológica da Rússia. Como se a Rússia fosse, agora, a ressurreição romana ou a Roma ressurgida, que vai levar os povos da humanidade para a salvação. Quer dizer, a Rússia, apareceria aqui, como a civilização que receberia o encargo dos céus para levar aos outros povos justamente a palavra da salvação.
