Rafael Brodbeck
Literatura e Liturgia
Olá a todos. Meu nome é Rafael Brodbeck. Eu sou delegado de polícia. Católico. Casado. Temos quatro filhos, eu e minha esposa. Fui convidado para apresentar, neste congresso de literatura católica, um tema que me é muito sensível e que há muitos anos é tema de meus estudos. Como católico que sou, o tema da liturgia – a relação entre a liturgia e a literatura -, que é o tema que vamos apresentar hoje, certamente fala à minha alma. Como a todo católico! Todo católico tem algum interesse, por mínimo que seja, na liturgia, no culto público que a Igreja presta.
Mas a mim, o tema da liturgia fala de modo especial. Não só porque todo domingo vamos à missa, porque no dia a dia nós rezamos o breviário., porque conhecemos uma ou outra oração da liturgia como todo católico deve conhecer, mas porque eu vejo a liturgia como um campo, não somente de oração, mas um campo de apostolado. Eu tenho visto que o interesse pelo estudo da liturgia, pelo estudo das formas litúrgicas, o estudo dos textos litúrgicos, da formação da liturgia, do desenvolvimento dos ritos litúrgicos, dos variados ritos que temos na igreja, tem ocupado um papel de destaque, inclusive, em discussões na internet e em conversas com as pessoas.
É muito comum os católicos de hoje se referirem à Missa Tridentina, mesmo à Missa Nova, depois do Concílio Vaticano II, rezada em latim. Ou um despertar do canto gregoriano. Do estudo das fontes da liturgia. Pois bem, isto que está se tornando cada vez mais popular entre os católicos mais estudados dos dias de hoje já era um tema que eu já estudava logo no início, quando estávamos começando a internet, nos primeiros fóruns de discussão, lista de e-mail, lá no final de 1997.
Desde o início da internet, o tema da liturgia foi, para mim, um tema de estudo. Comecei a procurar textos e livros litúrgicos e eu tenho uma biblioteca formada por textos de liturgia e sobre liturgia. Verificando, no estudo de liturgia, que nem sempre o culto público nas paróquias era celebrado conforme a Igreja mesma queria, eu comecei a me dar conta de que o respeito às normas litúrgicas e o entendimento da profundidade da liturgia deveriam ser resgatados. Quer formando melhor os padres, quer ajudando os leigos a terem um maior conhecimento dessa liturgia, que por vezes lhes era negado na paróquia pela bagunça litúrgica, desrespeito às normas.
Assim, começamos a juntar os amigos para ajudar a formar o clero, formar os padres. Aquela piada que antes se contava de que não se devia ensinar o padre a rezar a missa, hoje, infelizmente, não é uma piada, mas é uma realidade. Nós temos que ensinar alguns padres a rezar a missa, sim! Então, desde cedo, eu percebi (junto com meu diretor espiritual, junto com oração), que eu tinha algo a fazer a partir dos estudos que eu vinha fazendo. Não bastava simplesmente acumular conhecimento. Não seria para a minha vaidade, para acumular sabedoria. Não, eu tenho que colocar em prática nas coisas de Deus.
Então, nós procuramos formar as pessoas e, com isso, surgiu o site que muitas pessoas conhecem e que ainda hoje é uma referência em língua portuguesa sobre o assunto da liturgia e já foi recomendado pelo Vaticano também, que é o Salvem a Liturgia (www.salvemaliturgia.com). É um blog que surgiu despretensioso. Começou a agregar outras pessoas e a escrevermos vários textos. Hoje, é um site que nós quase não alimentamos, pois já escrevemos o que tínhamos que escrever na maioria das vezes, mas continua sendo altamente visualizado.
Logo, por conta desse tema da liturgia, da fundação do Salvem a Liturgia, muitas pessoas continuam a procurar não só a mim, mas a outros membros da equipe do blog, para dar palestras e falar sobre esse tema que me toca muito. Mas, o que tem a ver liturgia com literatura? Claro, literatura católica certamente. É muito fácil quando falamos de literatura católica, nos atentarmos aos escritores católicos. É muito fácil ao falarmos de literatura católica, lembrarmos de Chesterton, por exemplo, que escreveu não só textos de não-ficção como de ficção. É muito fácil nos lembrarmos de um católico que foi literato.
Por outro lado, em um conceito mais amplo de literatura, que não fala só de contos e de histórias, mas da escrita em geral, podemos nos lembrar dos santos que foram escritores, podemos nos lembrar dos grandes teólogos que escreveram: São Boaventura, São Tomás… Nós podemos falar de Santo Agostinho, dos grandes Padres da Igreja. Nós podemos nos lembrar dos papas que escrevem encíclicas. Então, nesse sentido, é muito fácil de literatura católica. Mas o que a liturgia tem a ver com a literatura, ainda que literatura católica? Este é o tema que nós vamos tratar nesta breve aula. Fazer a conexão entre a liturgia e a literatura.
Eu gostaria de começar citando alguns trechos do “Missarum Sollemnia”, que é um livro que conta a história do desenvolvimento do Rito Romano desde o primórdio, ainda no início da época apostólica, e fala um pouco de outros ritos litúrgicos também da Igreja. Mas ele vai falando do desenvolvimento do Rito Romano, cada parte da Missa, qual o sentido dela e como ela surgiu. Antes disso, na introdução, o Padre Jungman, que é um jesuíta, nos fala que a liturgia foi elaborada como obra de arte central da cultura cristã.
Por isso, a missa, que é o ato litúrgico por excelência, é uma obra de arte também. É uma obra de culto? Claro! É uma obra de culto à Deus. Mas ela também tem algo de arte e a arte nos remete a Deus. Portanto, estamos começando a entrar na senda da literatura, pois a literatura é uma forma de arte.
Hugo Ball, que era um dramaturgo, morto em 1927, dizia que para o católico (veja, um dramaturgo, um especialista em teatro), no fundo, não pode existir um teatro pois o espetáculo que o domina e que o prende a cada manhã é a Santa Missa. Ele não está condenando o teatro. Ele é um dramaturgo! Ele quer dizer que, diante da realidade que a Santa Missa se expressa por atos cênicos, que são atos muito plásticos (os gestos do padre, os cantos que se entoam, a maneira como se impunha o incenso), tudo isso tem uma dramaticidade, mas é uma dramaticidade que não conta uma ficção, é uma dramaticidade que conta uma história real. Diante disso, todo o teatro se esvaece. Nós podemos perceber que o teatro é também uma forma de literatura. Uma literatura encenada, mas que parte de um texto. Mas, para chegarmos a um ponto mais concreto de literatura, lembramos de Paul Claudel, que é um convertido, que ficara entusiasmado com a grandeza da liturgia quando ele foi à missa. Agora, eu cito Paul Claudel: “Foi a poesia mais profunda e mais grandiosa, foram os gestos mais nobres que jamais foram permitidos a um ser humano. Não podia me saciar na contemplação do espetáculo da Santa Missa”. Ele chama a missa de, não só um espetáculo, obra de arte teatral, como a poesia mais profunda. E o que é a poesia? É algo que fala muito a nossa alma. Que tem um ritmo determinado. Que tem uma musicalidade nas palavras.
A missa tem essa musicalidade nos gestos. Uma musicalidade nas palavras. Tem uma musicalidade nas cerimônias que são desenvolvidas. Elas não são cerimônias jogadas a esmo na liturgia. O padre não faz algo porque tem que fazer. Ele faz algo que conduz a outro algo. É todo um drama, todo um desenrolar de uma história que vai se descortinando na nossa frente pelos atos do sacerdote. Ainda mais em uma missa solene com sacerdote, com diácono, com subdiácono, com os acólitos, com o coro cantando em canto gregoriano, ou desenvolvendo uma polifonia (claro, estamos falando de música, mas mesmo assim de uma música que se baseia em um texto, até porque o canto gregoriano, como vamos falar depois, é um canto a serviço da letra). Portanto, mesmo essa musicalidade é uma forma de expressar algo literário como contar uma história. Uma história real. Uma história real, mas, ainda assim, uma história.
