Miguel de Cervantes

Carlos Nougué

Miguel de Cervantes

Há cerca de 10 anos, tive a honra de ser convidado para traduzir o primeiro volume da obra magnífica de Miguel de Cervantes, pelo Instituto Cervantes de Espanha, para o quarto centenário da edição princeps de Dom Quixote de La Mancha. A partir daí, entrei em contato profundo, pois traduzir uma obra como como Dom Quixote, requer um mergulho na obra mesma, na linguagem, no vocabulário do próprio autor, e um mergulho no ambiente cultural, artístico e literário da época e de toda a tradição espanhola que o antecedeu.

Pois bem, Miguel de Cervantes Saavedra foi um homem, um cavalheiro, que viveu entre o século XVI e o século XVII, e cuja atividade artística já sofre algum influxo do Concílio de Trento e da atividade dos Jesuítas. O que quero dizer com isso? Já sofre algum influxo dos inícios do que seria o barroco, que era o estilo artístico do chamado “século de ouro espanhol”. Ele é considerado maneirista: uma espécie de transição entre o renascimento e o barroco. Mas, antes de aprofundá-lo, e já tendo por suposto que se toda sua obra é boa ou quase toda é muito boa, o que excede no conjunto de sua obra é Dom Quixote de La Mancha, a história do engenhoso fidalgo.

Para que se entenda o Dom Quixote, tão mal interpretado – já se deu interpretação Marxista de Dom Quixote como um elogio da luta de classes, já se deu uma interpretação psicanalítica da luta de classes, etc, mas tudo isso é artificial e artificioso. Então, para que se entenda o que é Dom Quixote na história da literatura universal e particularmente na história da literatura espanhola, remetemo-nos ao que foi as novelas de cavalaria durante todo o conjunto da Idade Média.

Houveram dois grandes ciclos de novelas de cavalaria na Idade Média. Um desses ciclos, foi o ciclo chamado de Carlos Magno, cujo exemplar magno foi La Chanson de Roland, A canção de Rolando ou de Orlando. Por outro lado, houve o ciclo Bretão, dos chamados Cavaleiros da Tabula Redonda, do Rei Artur. Ambos os ciclos, de algum modo, tinham alguma raiz na tradição gnóstica medieval. Não vou discuti-lo aqui, isso é um assunto sobre o qual um dia escreverei, mas o fato é que ambos esses ciclos em suas obras, se caracterizavam por um fantasismo exagerado. Seus heróis, seus cavaleiros, matavam com um golpe de revés, que é um golpe oblíquo de espada, até mil inimigos no campo de batalha. Isso foi um traço exatamente desses dois ciclos. O exagero fantasista. O fantasismo exagerado. E isto, repita-se, por um lado de um lado de origem bretã, por outro lado de origem gala, ou seja, francesa. E o que era a literatura espanhola concomitantemente a isso? Era de um grande realismo. De um realismo quase cru, em que nada fantástico, fabuloso, mágico, aparecia.

Um exemplo típico da grande literatura medieval espanhola é El Cantar del Mio Cid, Cantar de Mio Cid, ou seja, o famoso Mio Cid. Houve uma transposição para o cinema, bastante boa, com Charlton Heston e Sophia Loren, El Cid, mas esta adaptação cinematográfica não se baseia no Cantar de Mio Cid medieval. Senão que se baseia na peça já pós-renascentista, uma peça teatral e não no poema, na epopéia medieval. Pois bem, voltemos a essa epopéia, a Canção de Mio Cid. Essa epopéia prima pelo realismo. Mas, como toda sã literatura, está presente Deus. Só o mundo moderno com sua atração pelo abismo é capaz de imaginar que a vida humana não tenha e que a história humana não tenha, de algum modo, a influência de Deus e não esteja sob a regência de sua providência.

Todos os povos, de todas as épocas, pelo menos os menos degradados como Babilônia, Egito, até as polis gregas e Roma, sempre acreditaram na ação da providência do divino sobre o homem e sobre sua história. Ora, se trata-se de uma literatura cristã, como era El Cantar del Mio Cid, obviamente, não há de faltar a ação da providência divina no curso dos acontecimentos. Mas, quando ao que é propriamente humano, El Cantar del Mio Cid é de um realismo impecável. Não havia lugar nessa magnífica obra, de autor anônimo, era uma canção de gesta, era cantada, era recitada mais ou menos como na origem o haviam sido as epopéias homéricas. El Cid, El campeador, foi o líder da expulsão dos mouros da espanha. E isto é retratado nesta magnífica canção de gesta com todos os traços do realismo tipicamente espanhol.

O espírito espanhol é de um realismo que não se encontrava nem se quer na sua vizinha Portugal. Não era Portugal ainda, de início, mas nesta parte oeste da Península Ibérica. É do caráter espanhol um realismo preciso, um realismo meticuloso, do qual não se afastaram nunca durante a Idade Média. Posto isto, já se tem que no livro Dom Quixote de La Mancha, no melhor espírito do realismo espanhol, uma sátira, uma ironia, com aqueles dois ciclos de cavalaria, que são o ciclo da Tabula Redonda e o Ciclo de Carlos Magno.

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